Economia
08/09/2025A busca pela inteligência
Empresas sabem que a IA chegou para mudar os negócios, mas ainda têm dificuldades para adotá-la no dia a dia

Em meio à corrida das big techs por quem dará o próximo grande passo rumo à maturidade da Inteligência Artificial (IA) — Mark Zuckerberg, da Meta, persegue o que tem chamado de superinteligência —, as ferramentas já disponíveis — como o ChatGPT, da OpenAI — ainda não fazem parte do cotidiano das empresas brasileiras. Embora reconheçam que a tecnologia veio para ficar, e que está na hora de adotá-la, as companhias têm dificuldades para avançar nesse processo.
“É mais complexo no caso de micro, pequenas e médias”, observa Kelly Carvalho, do Conselho de Economia Digital e Inovação (Cedi) da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “Porque grandes empresas têm orçamento, disponibilidade técnica e até um certo papel de liderança na adesão a novas tecnologias. As pequenas encontram, nesses critérios, justamente as suas barreiras”, continua.
Kelly elabora seu diagnóstico com base nos números de um estudo que ela encabeçou na FecomercioSP, idealizado para compreender, de fato, como a IA tem sido implementada no cotidiano dos negócios. Embora a amostra seja do Estado de São Paulo, ela acredita que a pesquisa aponta os desafios comuns a boa parte do ambiente empresarial brasileiro nesse assunto.
Uma das coisas que ela nota no estudo, por exemplo, são as diferenças de adoção da IA pelo porte das empresas. Quando perguntadas sobre a presença da IA em suas atividades, 36% dos negócios médios e grandes responderam que sim, isto é, que já há ao menos algum processo no cotidiano deles automatizado com a tecnologia. Já entre as micro e pequenas, a taxa foi de apenas 24%.
O estudo da Federação adotou, como base de definição do tamanho das empresas, os critérios utilizados pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — as grandes têm mais de 100 funcionários, e as médias, entre 50 e 99. As pequenas, entre 10 e 49, e as micro, até 9 colaboradores. A partir disso, a pesquisa dividiu a amostra em duas partes: micro e pequenas, ou MPEs, com até 50 funcionários, e as médias e grandes, de 50 para cima.
“O que impede as MPEs de usarem IA é, acima de tudo, uma crença limitante”, reflete João Capelli, professor de marketing na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), que em seu doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estuda como as empresas têm se relacionado com inovações por meio dessas ferramentas. “Elas pensam que usar a Inteligência Artificial depende de grandes investimentos, ou que isso é coisa somente de quem trabalha com tecnologia. Na verdade, até mesmo a cabelereira, a manicure, o garçom por demanda, podem usar alguma IA para atender clientes ou manejar a agenda, por exemplo”, explica o professor.
Limitações para os pequenos
Segundo Capelli, o ponto principal é que essa crença ainda tem efeitos práticos. O estudo da FecomercioSP mostra que 62% das companhias menores admitem sequer terem planos de implementar algum instrumento automatizado — número que cai para 40% entre médias e grandes. “Esses negócios não sabem que podem usar uma miríade de novos instrumentos abertos de IA, que são públicos, bastante democráticos, e que são extremamente baratos, quando não são gratuitos”, completa.
Para Kelly, é exatamente isso que chama mais atenção: as MPEs não estão lançando mão nem mesmo dos modelos de Processamento de Linguagem Natural (PLN), como o ChatGPT, da OpenAI, o Gemini, do Google, o DeepSeek, do laboratório chinês de mesmo nome, ou o Copilot, da Microsoft. Dentre os dados colhidos pela Federação, apenas 15% das micro e pequenas citam esses assistentes entre as atividades rotineiras — número que vai para 38% entre as médias e grandes.
“É mais falta de conhecimento do que falta de necessidade”, aponta a conselheira da FecomercioSP. “Estamos falando de muitos empreendedores e empreendedoras que têm pouco tempo para absorver novas funcionalidades, embora estejam flexíveis a mudanças”, pontua. Mas, segundo Kelly, isso não significa que essas pessoas estão presas em um mundo analógico, já que usam muito bem as redes sociais e os aplicativos de contato, como o WhatsApp — no qual, inclusive, há ferramentas de IA embutidas. “É questão de avançar no que elas já utilizam de ferramentas digitais”, sinaliza.
Uma pesquisa do Observatório Fundação Itaú e do Datafolha mostrou, há algumas semanas, que 93% dos brasileiros usam algum tipo de dispositivo com IA. Ou seja: ela se popularizou em um ritmo absoluto no País.
Na visão do sociólogo Dimitri Fazito, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o entrave está, na verdade, no mercado de trabalho, que ainda não conseguiu encontrar mão de obra qualificada para atender às novas exigências. “Não se trata somente de formar pessoas, mas de letramento digital. O Brasil até tem uma boa qualificação na área de tecnologia, mas o desenvolvimento técnico necessário para manejar essas ferramentas é muito mais profundo, mais demorado, um processo contínuo e complexo”, ressalta.
Fazito conta que seus colegas empresários têm mostrado um cenário difícil — dizem que não vão conseguir resolver o gargalo de especialistas nos próximos cinco anos, ou que os jovens recém-formados não estão conseguindo dar conta. “Sabe como se está resolvendo isso? Trazendo de volta funcionários com uma formação clássica que tinham sido demitidos para dar lugar a esses jovens”, resume.
Foco em atender o cliente
Outro insight interessante que a pesquisa traz é a demanda dos negócios por modelos mais baratos de atendimento ao cliente — justamente onde está o principal argumento da utilidade da IA, sobretudo entre micro e pequenos empreendimentos.
O estudo perguntou em qual área as empresas acreditam que a chegada de alguma ferramenta de Inteligência Artificial seria mais impactante, e escutou de uma maioria (47%) que seria em marketing e vendas. Nesse caso, o tamanho pouco importa — 48% das MPEs apontaram esses setores, taxa que foi de 42% entre as médias e grandes.
De acordo com Capelli — que, além de professor, presta consultoria para empresas que querem adotar IA —, isso é reflexo de como elas buscam maneiras de atender bem os clientes, mas encontram barreiras no alto custo para manter a recepção humana. “E isso já existe: são os chatbots personalizados. Eles atendem 24 horas e, às vezes, até melhor do que uma pessoa, pois são treinados com o conteúdo institucional e têm um custo mínimo”, avalia.
O consultor explica que existem ferramentas com franquias de uso, como o Chatbase, que oferecem até 200 conversas gratuitas por mês. “Você nem precisa entender de código. Quer dizer — se a demanda é essa, há muito o que a IA pode oferecer”, completa.
Não é trivial, tampouco, que um terço dos negócios que participaram do estudo tenha dito que já faz uso ou pretende usar chatbots personalizados. Essa tecnologia fica atrás somente das ferramentas de geração de conteúdo (39%) entre as adesões mais comuns.
Custo, entrave importante
É curioso notar, por outro lado, como os desafios não são compartilhados. De um lado, os custos altos de implantação de sistemas de IA são mais apontados pelas médias e grandes (14%) como barreiras significativas para avançar nesse processo do que pelas pequenas (11%).
Segundo Kelly, da FecomercioSP, essa diferença acontece porque as médias e grandes precisam lidar com gastos que não são necessariamente os mesmos das MPEs, como a legislação de proteção de dados ou o compliance. “Muitas das grandes lidam com clientes enormes, ou têm um volume de atendimentos gigantesco e, por isso, precisam lidar com implicações de caráter legal. Esses riscos não chegam da mesma forma aos pequenos negócios”, compara.
Justamente por isso, as grandes companhias estão mais atentas às questões de proteção dos seus dados — que, em muitos casos, são informações financeiras confidenciais ou, no limite, dados de clientes que, se vazarem, as prejudicam na concorrência. Na pesquisa da FecomercioSP, 36% das empresas de maior porte sinalizaram que a segurança é uma barreira para a adoção da IA. Essa taxa é de 15% entre as menores.
Fazito, da UFMG, observa que o que chama atenção, porém, é uma desigualdade que, se já existe entre as empresas, tende a se aprofundar daqui em diante. Os dados da FecomercioSP, reflete ele, deixam isso bem evidente. “Basta pensarmos no nível de financeirização dos negócios”, começa. “Empresas maiores, que podem acessar modelos financeiros, sejam startups, joint ventures ou algum investimento disponível, têm mais condições de correr o risco de passar pela implementação. E isso é muito mais difícil para uma pequena empresa”.
O mesmo raciocínio vale para a distinção entre setores — alguns deles vão se transformar muito daqui para frente, enquanto outros devem ficar para trás, mesmo que se digitalizem em algum nível. “É dessa dinâmica que a economia do futuro sairá”, conclui Fazito.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.