Economia
06/06/2025Guerra comercial: a estratégia brasileira na nova ordem mundial
FecomercioSP reúne especialistas para apontar caminhos ao Brasil em meio a um panorama de disputas comerciais e instabilidade geopolítica

Nos últimos anos, o comércio internacional tem sido estremecido por uma escalada de conflitos geopolíticos e pela intensificação do protecionismo, especialmente após a volta do presidente Donald Trump ao comando dos Estados Unidos e sua imediata adoção de um “tarifaço” contra todo o mundo, visando à proteção da economia do país. A invasão da Ucrânia pela Rússia e as guerras no Oriente Médio, somadas ao embate comercial entre estadunidenses e chineses — as duas maiores economias do mundo —, pressionam ainda mais a ordem multilateral estabelecida no pós-guerra.
Nesse reposicionamento das grandes potências, com incertezas constantes quanto a diplomacia e defesa comercial, o Brasil se vê diante da necessidade inadiável de modernizar a própria economia e ampliar a sua abertura ao mercado internacional. O desafio passa por adaptar-se às novas configurações das cadeias produtivas externas, fortalecer o dinamismo interno e preservar a credibilidade do País como parceiro estratégico em um ambiente de alianças voláteis e concorrência intensa entre os blocos econômicos. Nesse contexto, a aproximação com a Europa ganha ainda mais relevância.
Para avaliar as perspectivas nacionais na nova ordem comercial do planeta, a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) reuniu os especialistas Diego Bonomo, assessor sênior do escritório Covington & Burling LLP, em Londres; Lucas Ferraz, professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP) e ex-secretário de Comércio Exterior; e Bernardo Ivo Cruz, professor convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e ex-secretário de Internacionalização de Portugal.
Confira, a seguir, um resumo do debate promovido pelos conselhos Superior de Economia, Sociologia e Política e de Relações Internacionais, ambos órgãos de trabalho da FecomercioSP, presididos, respectivamente, por Antonio Lanzana e Rubens Medrano.
COMO FUNCIONA A ESTRATÉGIA DOS ESTADOS UNIDOS NA ATUAL GUERRA COMERCIAL
“O Brasil evita partir para a confrontação e a retaliação contra os Estados Unidos. Se olharmos todo o emaranhado das tarifas de Trump, talvez o nosso caso seja dos países relativamente menos impactado do que outras grandes economias.” Diego Bonomo
Segurança como prioridade absoluta
Segundo Bonomo, entender a guerra comercial exige compreender a essência da política “America First” (“América primeiro”), lançada desde o primeiro governo Trump. “O valor fundamental dessa política externa é a segurança — sempre que houver conflito de valores, a segurança prevalece, seja interna, seja continental, seja internacional”, destacou. A busca por autonomias econômica, política e militar está no centro da estratégia, com foco nas decisões de curto prazo que possam ser apresentadas ao eleitor. O “tarifaço” promovido por Trump se enquadra nisso.
Na política comercial, o “America First” se traduz em três grandes objetivos: reduzir ou eliminar o déficit comercial, visto como um risco à segurança; reestruturar a relação entre Estados Unidos e China, já que a interdependência entre ambos é considerada prejudicial para a segurança norte-americana; e promover a reindustrialização de materiais críticos como tática para garantir a segurança econômica do país.
Instrumentos não tradicionais
Um dos diferenciais atuais da política comercial do país do Norte é o uso intenso de instrumentos delegados pelo Congresso para imposição de tarifas, mas que fogem do escopo tradicional regulado pela Organização Mundial do Comércio (OMC). “O governo faz uso crescente de salvaguardas de segurança nacional, investigações de ‘ataque comercial’ e instrumentos não convencionais, muitos deles nem criados originalmente para comércio exterior”, explica. Bonomo ainda afirmou que “existe um arsenal à disposição do Executivo, e o fato de haver regras internacionais não impede os Estados Unidos de avançarem com tarifas e barreiras quando considerarem necessário”.
Tarifa como ferramenta geopolítica
Bonomo também ressaltou que, atualmente, as tarifas estadunidenses superam as questões econômicas. “Há tarifas ligadas a temas como imigração, drogas e até relações com países como Irã e Venezuela. Elas são aplicadas como sanções e instrumentos de pressão geopolítica, e não apenas comercial.”
Como reagem as grandes economias
Segundo o especialista, os países têm adotado três grandes estratégias em resposta a essa política. A primeira, o “pragmatismo ofensivo”, envolve negociação antecipada entre chefes de governos sem retaliar os Estados Unidos — caso de Índia, Japão, México e Reino Unido. A segunda é a da “retaliação para negociar”, usada por China, Canadá e União Europeia, que aplicam tarifas para obter espaço em futuras negociações. E, por fim, a terceira estratégia é a da não confrontação, o método brasileiro. “Isto é, não se adota uma postura ofensiva e também se evitam retaliações. Até aqui, tem sido dos menos afetados diretamente”, explicou o assessor.
Resultados tímidos
Até o momento, apenas China e Reino Unido conseguiram acordos — descritos por Bonomo como “de caráter superficial, que apenas recuam em algumas tarifas e criam promessas para negociações futuras”. A maioria das grandes economias segue tentando se reposicionar frente a um cenário de regras incertas e decisões centralizadas na Casa Branca.
OPORTUNIDADES E RISCOS NA NOVA ORDEM DO COMÉRCIO GLOBAL
“O Brasil deve manter a linha neutra nessa guerra comercial […] nossa tradição foi sempre o pragmatismo, de não alinhamento automático, e é assim que devemos continuar operando.” Lucas Ferraz
O fim da ‘paz americana’ e a ascensão chinesa
Lucas Ferraz enfatizou que a atual guerra comercial está inserida em um contexto maior: o declínio do multilateralismo e a desconstrução da “paz americana” estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial. Ele apontou que a ascensão chinesa, tanto em termos econômicos quanto tecnológicos, tirou os Estados Unidos da posição de única potência global. “Já não existe mais aquela distância imensa entre os norte-americanos e os demais países; a China hoje já rivaliza não só em PIB, mas também em tecnologia e produção industrial.”
Benefícios e dilemas da globalização
Ferraz também relembrou que as últimas décadas foram marcadas por avanços importantes estimulados pela globalização, como a redução da pobreza e a expansão do comércio digital e de serviços. “Tivemos crescimento, queda da pobreza — principalmente nos países em desenvolvimento — e mais empoderamento de pequenas empresas e mulheres.” Por outro lado, ele alertou que o processo também trouxe tensões sociais relativas ao mercado de trabalho, bem como aumentou as desigualdades, principalmente nos Estados Unidos. “Há um quadro preocupante de aumento de desigualdade social, agravado por mudanças tecnológicas e pela queda no emprego manufatureiro, fenômeno que não será resolvido com protecionismo.”
Equívocos do protecionismo ianque
Muitas das premissas que fundamentam o “America First” são, segundo Ferraz, economicamente equivocadas. Ele refutou a ideia de que os Estados Unidos teriam sido prejudicados pelo comércio internacional. “A sociedade norte-americana foi uma das maiores beneficiadas pela globalização e pela redução tarifária, com acesso a produtos melhores e mais baratos.” E ainda criticou a crença de que aumentar tarifas resolverá déficits comerciais. “O déficit de lá é estrutural, resultado de baixa poupança doméstica, e [isso] não se resolve com barreiras.” Ele também ressaltou que tarifas são impostos regressivos que penalizam, em especial, os mais pobres.
O papel da OMC e as negociações
Ferraz fez um alerta para o risco de enfraquecimento da OMC diante da postura unilateral dos Estados Unidos, defendendo a necessidade de fortalecer o sistema multilateral de regras. “O pior cenário é o do mundo da lei do mais forte, com cada país buscando barganhar vantagens em acordos fragmentados. Nações menores como o Brasil não têm a ganhar nesse modelo.”
Oportunidades para o País: pragmatismo e diversificação
Apesar dos riscos, Ferraz vê oportunidades para o País, desde que mantenha uma postura pragmática e não se alinhe automaticamente com qualquer bloco. “O Brasil já se beneficiou em setores como o Agroindustrial e pode avançar em novos acordos, como o Mercosul–União Europeia. É hora de destravar negociações paradas com países como Canadá e México, focando em cláusulas modernas e promovendo a competitividade da nossa Indústria.”
Para ele, o Brasil deve atuar como um conector, dialogando com todos, aproveitando vantagens dos dois grandes blocos e investindo na reforma e na atualização da sua política comercial para não afetar a própria Indústria.
Risco de retaliação
Ferraz também defendeu ser fundamental o Brasil ter cautela, rigor técnico e transparência nas investigações de defesa comercial, sob o risco de prejudicar a Indústria nacional. “Quando se aplicam tarifas altíssimas — muitas vezes de 60%, 70% ou 80% —, de forma pouco técnica e sem embasamento, acaba-se penalizando toda a cadeia produtiva. Não se trata de defender a abertura irrestrita do mercado, mas de evitar que medidas desproporcionais comprometam a competitividade da Indústria brasileira, já bastante impactada pelo alto custo das matérias-primas.”
EUROPA: DEFESA PRÓPRIA, DIPLOMACIA ENTRE DEMOCRACIAS E OPORTUNIDADES COM O MERCOSUL
“Para as empresas brasileiras, usar Portugal como porta de entrada para a Europa pode ser a forma mais segura de acesso ao mercado europeu.” Bernardo Ivo Cruz
Da proteção norte-americana à autonomia europeia
Cruz explicou que as declarações recentes de Trump puseram em xeque a histórica proteção da Europa sob o “guarda-chuva” estadunidense e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). “A União Europeia percebeu que, após 80 anos do pós-guerra, precisa aprender a se defender sozinha, a ser um ator de defesa independente”, afirmou.
Nova diplomacia e voz para emergentes
O quadro multipolar fez a União Europeia buscar novos tipos de relacionamento internacional, especialmente com outras democracias. Cruz destacou que “a Europa busca cooperação com países como Canadá, Brasil, México, Índia, Japão, Austrália e muitos outros. E reconhece que o modelo multilateral tradicional não deu o devido espaço a vozes de países como África do Sul, Brasil e Índia, papel que agora pretende valorizar mais.”
Autonomias econômica e comercial
Em relação à economia, a União Europeia segue como grande ator mundial e responde à guerra comercial investindo em diálogo direto com os Estados Unidos e revisando acordos — como o tratado com o Mercosul. “O bloco encarou as tarifas norte-americanas com uma postura de enfrentamento, pois acredita ter instrumentos para negociar de igual para igual”, avaliou.
Acordo UE–Mercosul: vantagens e preparação
Cruz detalhou que o acordo entre União Europeia e Mercosul prevê eliminação de 90% das tarifas, desagrava as taxas aduaneiras de 240 produtos e deve aumentar cerca de 10% nas exportações brasileiras para a Europa nos primeiros quatro anos, além de 1,8 bilhão de euros em apoio às transições ambiental e digital do bloco sul-americano. “Será essencial para as empresas brasileiras se prepararem desde já para ampliar a competitividade e aproveitar os benefícios de acesso a um mercado de 450 milhões de consumidores.”
Portugal como ponte para o mercado europeu
O especialista ainda ressaltou as vantagens para o Brasil ao usar Portugal como porta de entrada para a União Europeia, em virtude da extensa rede de acordos bilaterais. “Se uma empresa brasileira quiser acessar o mercado europeu, criar uma empresa em Portugal será a forma mais segura, pois garante vantagens tanto pelo direito europeu quanto pelos acordos bilaterais com o Brasil”, explicou.
A experiência de Portugal ao ingressar na União Europeia traz lições valiosas para empresas brasileiras, segundo Cruz. “O país teve de se reinventar para competir com gigantes industriais europeus. O que deu certo ou errado em terras lusitanas pode orientar o setor produtivo brasileiro nessa nova fase de integração.”
Assista na íntegra!