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Editorial

A arte de curar mentes: há 120 anos, nascia a médica pioneira no Brasil no uso da arte para reabilitar pacientes com transtornos mentais

Ferrenha opositora dos métodos psiquiátricos do início do século 20, Nise da Silveira declarou guerra aos manicômios e hospícios, marcados por encarceramento e brutalidade

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A arte de curar mentes: há 120 anos, nascia a médica pioneira no Brasil no uso da arte para reabilitar pacientes com transtornos mentais
Ainda nos anos 1940, a médica fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, no Hospital Pedro II, onde pôs em prática o conceito de que "arte e afeto curam mais que os psicotrópicos" (Arte: TUTU)

“Não. Nunca mais.” As peremptórias negativas da psiquiatra Nise da Silveira — ao se recusar a apertar o botão da máquina que desferia eletrochoque nos pacientes e, depois, ao se arrepender de ter aplicado um choque de insulina numa mulher que por pouco não morreu em suas mãos — representaram um divisor de águas no tratamento das doenças mentais no Brasil. Ao ser confrontado pela rebeldia da funcionária, o diretor do Centro Psiquiátrico Nacional disparou: “Não tenho onde botar você. Todas as enfermarias seguem a linha desses medicamentos novos. Fora disso, só há a terapia ocupacional, que é para serventes”.

Dessa forma, numa área na qual sequer havia médicos, nasceu, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor), no Hospital Pedro II, no bairro carioca do Engenho de Dentro, criada e dirigida, até 1974, pela médica alagoana que declarou guerra aos manicômios e hospícios, marcados por encarceramentos e brutalidades a que doentes mentais foram submetidos durante séculos.

Nise empregou a pouca verba de que dispunha (trinta contos) para abrir pequenas oficinas que, ao longo do tempo, se transformaram em 17 núcleos de atividades, com o objetivo de estimular a capacidade de expressão dos pacientes. Ao lado de trabalhos manuais — como jardinagem, encadernação, marcenaria, tapeçaria, colagem e costura —, ateliês de desenho e pintura valorizavam a criatividade, presente também na dança e na música. Enfermeira por profissão, a sambista e compositora Dona Ivone Lara foi uma das participantes dessa “revolução pelo afeto”, como também seria conhecido o conjunto da obra de Nise, que incluiu o pioneiro uso de cães e gatos, elevados à condição de coterapeutas, para o estímulo de relações emocionais catalisadoras entre pacientes e animais.

Os resultados mais espetaculares surgiram nas artes plásticas. Pinturas e desenhos realizados por doentes crônicos — como Emygdio de Barros, internado por mais de 20 anos e incapaz de se comunicar verbalmente — despertaram o interesse de Carl Gustav Jung, considerado o pai da psicologia analítica, com quem Nise estabeleceria profícua colaboração. Em 1949, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) exibiu a mostra Nove artistas do Engenho de Dentro, avalizando a qualidade artística de trabalhos que figurariam, junto a milhares de outros, no Museu de Imagens do Inconsciente (MII), inaugurado pela médica na capital fluminense, em 1952.

A aproximação entre arte e loucura já vinha sendo desenvolvida desde 1923, quando o psiquiatra Osório César criou o Laboratório de Pesquisas Plásticas para estimular a produção artística dos pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, na cidade de Franco da Rocha, na Grande São Paulo (SP). Companheiro da pintora modernista Tarsila do Amaral, César publicou um resumo da experiência no livro A expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte, de 1929. O ápice das obras produzidas entre as frias paredes de um manicômio foi a de Arthur Bispo do Rosário, interno durante 50 anos na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio. Em 1995, na Bienal de Veneza, os seus objetos tridimensionais, confeccionados com fragmentos e restos industriais, impressionaram como nunca acontecera antes com um artista brasileiro.

‘Doutora vermelha’

Nise nasceu há 120 anos, em 15 de fevereiro de 1905, em Maceió (AL), e morreu na metrópole carioca, aos 94 anos, em 30 de outubro de 1999. A sua vida longa e singular foi de tal modo expressiva dos conflitos de seu tempo, que o escritor e frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, considerou-a a “mulher do século”.

Razões para isso não faltam na sua biografia. Em 1926, tornou-se a primeira médica alagoana e única representante mulher na turma de 157 formandos daquele ano, na Faculdade de Medicina da Bahia — pertencente à Universidade Federal da Bahia (UFBA). Casou-se com o próprio primo e colega de turma Mário Magalhães, médico sanitarista, com quem fez um pacto de não terem filhos para dedicarem-se mais intensamente à medicina. Apaixonada por gatos, chegou a ter 12 e, sobre eles, escreveu o livro Gatos, a emoção de lidar.

Em 1927, chegou ao Rio, então capital da República, disposta a se especializar em neurologia. Instalou-se com o marido no bairro de Santa Tereza, tendo como vizinhos o poeta Manuel Bandeira e o conterrâneo líder comunista Otávio Brandão, que a colocou em contato com a leitura marxista e a levou a frequentar reuniões do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Engajada como médica da União Feminina Brasileira (UFB), pioneira entidade feminista, ela e a escritora e artista Patrícia Galvão, a Pagu, foram as únicas mulheres a assinarem o “Manifesto dos trabalhadores intelectuais ao povo brasileiro”, contra a opressão e a miséria.

Em 1933, ao finalizar a especialização em psiquiatria, foi aprovada em concurso público para trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha, no Rio. No entanto, em 1936, foi denunciada por uma enfermeira pela posse de literatura subversiva e sua vida sofreu um baque: encarcerada por 18 meses, passou os seis anos seguintes na clandestinidade, vagando por diversos Estados, até a redemocratização do País. “Presa a doutora vermelha”, dizia a manchete anunciando a sua detenção no presídio Frei Caneca, onde ficou na famosa Sala Quatro, ao lado de Olga Benário Prestes e outras presas políticas, como retratado em Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos.

Reintegrada ao serviço público em 1944, iniciou a trajetória de transformação da saúde mental que, nos anos 1950, a conduziu até Zurique, na Suíça, para aperfeiçoar estudos no Instituto C. G. Jung, o que resultou no livro de sua autoria Jung: vida e obra. Sempre visionária, inaugurou, em 1956, no bairro carioca de Botafogo, a Casa das Palmeiras, clínica pioneira para doentes mentais em regime de externato, uma antecipação dos atuais Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

Fim dos manicômios

O legado de Nise inspirou, nos anos 1970 e 1980, a Luta Antimanicomial, movimento formado por trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental, resultando na Lei da Reforma Psiquiátrica e pondo fim à degradação humana que proliferava nos hospícios brasileiros. A proposta legislativa, apresentada em 1989 pelo então deputado federal Paulo Delgado, sociólogo, cientista político e diretor na Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), tramitou durante 12 anos, até ser aprovada e sancionada em 2001. Nise, entretanto, continuou polêmica em pleno século 21. O seu reconhecimento pelo Estado nacional como “heroína da Pátria”, vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro, só se transformou na Lei Federal 14.401, de 8 de julho de 2022, com a derrubada do veto pelo Congresso Nacional.

Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.

A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.

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